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Lucerna

Tongobriga é o nome, de raiz pré-latina, de um povoado cuja origem remonta a um período anterior à integração do noroeste peninsular no Império Romano e que se prolonga muito para além da desintegração desse mesmo Império. Localiza-se na bacia do Douro, no vale de um dos seus principais afluentes, o Tâmega. As suas ruínas estão integradas numa área com cerca de 50 hectares, classificada como Monumento Nacional desde 1986, e sob gestão da Direção Regional de Cultura do Norte. Administrativamente, situa-se na freguesia de Marco, concelho de Marco de Canaveses, distrito do Porto, no Norte de Portugal.

Até finais do século XVIII e inícios do século XIX, grande parte das suas ruínas deve ter mantido uma volumetria considerável, aflorando à superfície e permitindo à pobre e escassa população rural que aí vivia, um convívio diário com essas ruínas, fazendo delas uso quotidiano, quer reconstruindo-as e dando-lhes novo uso, quer como fonte de materiais de construção para a profunda modelação do terreno que, a partir de então, se pôs em marcha com o objetivo de o tornar apto à prática agrícola.

Topografia

Entre as mais antigas notícias, salientamos a descrição do pároco de Santa Maria do Freixo, datada de 1758, na qual se revela que o Freixo algum dia teria sido “cidade de mouros”, da qual eram ainda visíveis “alicerses de muros, com que algum tempo foi murada” (nada menos que a muralha) e “parte de huma mesquita, que mostra haver sido caza de seos falsos deuzes” (nada menos que as termas romanas).

Apesar destas notícias, as mais massivas alterações da topografia antiga de Tongobriga só viriam a ocorrer já na primeira metade do século XIX, o que, por entre notícias de achados de aras votivas e miliários, púcaros e outras “antigualhas”, levou a que se tenham interessado pelo Freixo personalidades tão ilustres como José Leite de Vasconcelos, Francisco Martins Sarmento, Emílio Hübner e Martins Capela, ou ainda, um pouco mais tarde, Manuel de Vasconcelos e M. Vieira de Aguiar.

Ainda em finais do século XIX, mais precisamente em 1882, seria descoberta uma ara votiva, dedicada ao Genio Tongobricense, a qual viria a permitir estabelecer uma relação entre o sítio e uma das paróquias suevas referidas na célebre Divisio Theodemiri, de finais do século VI, pelo que as já então evidentes ruínas passaram a ter um nome: TONGOBRIGA.

Investigação

A revelação de Tongobriga, para a arqueologia e para a população em geral, ainda teria de aguardar mais um século, até 1980: deve-se a Lino Tavares Dias e à sua equipa. O projeto de investigação que este arqueólogo aí desenvolveu durante mais de 30 anos permitiu identificar e valorizar um significativo conjunto de ruínas, atribuíveis à época romana.

Hoje em dia, Tongobriga e a aldeia histórica de Santa Maria do Freixo dispõem de um serviço permanente de investigação arqueológica e de atendimento ao público, incluindo um restaurante/cafetaria, um auditório e o centro interpretativo, com uma exposição temática intitulada “Mudar de Vida”, designação que pretende realçar as mudanças que, a partir do século I d.C, a integração no império provocou na vida dos habitantes do noroeste peninsular.

A investigação aí realizada desde 1980, permitiu a afirmação de Tongobriga romana no panorama científico português e internacional, afirmação essa que foi essencialmente baseada no conhecimento do seu urbanismo, entendido no contexto da respetiva promoção a capital de civitas.

Tongobriga, Um espaço e um tempo

Embora a sua dimensão e a estrutura nos indiciem que teria grande importância, Tongobriga não é referida pelos autores clássicos. Nem Ptolomeu se lhe refere claramente nem Plínio, O Velho, a cita entre as civitates a Norte do Douro, nem os tongobricenses surgem entre os nomes conhecidos dos populi que habitavam esta região. Significa isto que os tongobricenses fariam parte de um populus com outro nome? Pertenceriam os tongobricenses aos Tamacani, isto é, aos que habitavam junto ao rio Tâmega?

Certo é que Tongobriga conheceu um desenvolvimento urbano ímpar a nível regional. E que, como não se lhe reconhecem especiais recursos naturais – jazidas minerais, aptidões agrícolas, silvícolas ou cinegéticas – não será por eles que conseguiremos explicar esse desenvolvimento. Essa explicação passará, sobretudo, pela sua importância estratégica como nó viário e ponto de intersecção entre rotas fluviais e terrestres, entre o litoral e o interior.

Numa perspetiva macrorregional, poder-se-á afirmar que Tongobriga se situa num ponto de contacto entre a planície litoral e a área de montanha, podendo desta forma funcionar naturalmente como mercado para transação de produções diferenciadas de dois meios naturais contrastantes e complementares. A sua localização geográfica apresenta ainda outros atrativos de grande importância.

É preciso ter em conta a importância do rio Douro, que Plínio o Velho considerava “um dos maiores rios da Hispania”. A navegabilidade do Douro ao longo de cerca de 145 quilómetros, entre a foz e o célebre Cachão da Valeira – obstáculo que foi destruído em finais do século XVIII – já é reconhecida desde época clássica. A ela se refere Estrabão, que nos diz que o rio “é capaz de ser navegado por grandes navios por uma distância de quase 800 estádios”, os quais correspondem, com exatidão, àquele troço do rio. A importância económica do Douro, navegável desde tempos imperiais, vem sendo reconhecida pela identificação de vários locais que terão servido como instalações portuárias.

Em conjunto com os seus principais afluentes, nomeadamente o Tâmega e o Corgo, o Douro constituiu, desde uma época anterior à romanização, uma via de penetração a partir do oceano Atlântico, mas também um canal de escoamento de produtos do hinterland e de contactos – comerciais e também culturais – entre as duas margens. Alain Tranoy chega a considerar o Tâmega como uma via de comunicação essencial para o escoamento de produtos mineiros do interior (nomeadamente da zona de Vila Pouca de Aguiar / Jales / Tresminas) e para o desenvolvimento do território da cidade romana de Aquae Flaviae (Chaves).

A imponente ponte romana do Tâmega, refeita na Idade Média e infelizmente demolida há poucas décadas atrás, deveria marcar o local de um ancestral ponto de travessia do rio, nas proximidades deste porto fluvial e das nascentes de águas termais de Canaveses, o que confere a esta área uma importância fundamental enquanto encruzilhada de vias fluviais e terrestres, de ligação entre o interior montanhoso e o litoral. Tongobriga teve, deste ponto de vista, uma localização privilegiada para um aglomerado populacional que terá feito deste cruzamento de rotas a sua maior mais-valia.

No século I da era cristã, este itinerário viria a ser integrado numa rota terrestre de longo curso: a estrada romana que unia duas capitais provinciais criadas no tempo do Imperador Augusto: Emerita Augusta e Bracara Augusta.