
A aldeia do Freixo
Antigos caminhos feitos com gastas pedras que já há muito perderam a aspereza que nos habituamos a sentir no granito local. Pedras que mais não são que o topo dos muros romanos a aflorar à superfície. Inúmeros e minúsculos objetos, feitos em pedaços pelo arado, pela enxada e pela incúria. Trastes do tempo dos mouros para uns, preciosas fontes de informação sobre o passado para outros.
Velhas mas esmeradamente esquadriadas pedras, fruto do trabalho que já há muito tempo alguém teve. E que agora são parte de modestas casas, pequenas cortes de gado e toscos muros agrícolas.
No Freixo, a nova vida das velhas coisas de Tongobriga não se esgota, porém, neste precoce mas eficaz processo de reciclagem.
Uma vetusta muralha que nunca deixou de marcar o espaço da aldeia, mesmo depois de ter sido transformada em muro de socalco agrícola.
Um forum que teimou em cumprir a sua função primordial durante mais de mil e quinhentos anos, muito para além do fim da civilização que o ergueu.
Um monumental edifício de banhos públicos que, no imaginário popular, não poderia ter servido fim mais nobre que o culto divino – primeiro como Ermida de Nossa-Senhora-A-Velha, mais tarde como Mesquita ou Capela dos Mouros.
Velhas domus dos tempos do Império, já destelhadas mas teimando em manter-se em pé, transformadas em cortes de gado ou tendas de feira, com os seus cubicula convertidos num qualquer espaço descoberto de um qualquer quintal onde nem o essencial poço de água falta.
Não fosse a dificílima tarefa de lavrar campos cobertos por um espesso manto de pedras, diríamos que aqueles que ergueram a aldeia do Freixo agradeceram aos deuses o trabalho que lhe foi adiantado pelos que, séculos antes, haviam erguido Tongobriga.
Certo é que até aos finais do século XVIII, Tongobriga e Freixo dificilmente se deveriam distinguir, tal era a marcante presença das ainda visíveis – e em parte utilizáveis – ruínas da primeira nos espaços e escassas construções da segunda.
Sujeitos a forte erosão por causa da sua topografia e pejados de pedra solta proveniente das ruínas, os terrenos da colina em que se ergueu Tongobriga não rendiam nada. E como tal nada valiam.
Só quando já nos aproximávamos da centúria de oitocentos, quando a expansão demográfica nas zonas rurais obrigou ao aproveitamento das terras até então desprezadas, é que se deu o verdadeiro divórcio entre a herança de Tongobriga e os seus herdeiros de Santa Maria do Freixo.
Arrotearam-se terras abandonadas, surribaram-se as encostas, multiplicaram-se os muros, as leiras e as sortes, as bouças e os campos, carrearam-se toneladas de terra proveniente dos férteis vales envolventes para dar espessura – e capacidade produtiva – a solos que nada produziam. E criaram-se as condições para fixar gente na aldeia. Que a partir daí cresceu.
Então – mas só então – as ruínas se cobriram de terra e deixaram de pertencer ao mundo dos vivos. Foi o preço que se pagou para dar aos do Freixo o sustento que a feira da Quaresma cada vez menos lhes garantia.