
A “privatização” de um lugar
Independentemente dos habitantes – certamente muito escassos – que pudesse haver na aldeia do Freixo no século XII, o nosso primeiro rei, não as reconhecendo como privadas, dispôs delas como bem entendeu e com elas formou o couto do mosteiro de Tuias. Iniciou-se então um longo período em que estas terras foram geridas como todos os coutos monásticos: incapazes de as explorar diretamente, as freiras aforavam as suas propriedades a troco de rendas anuais, muito variáveis em função da qualidade e extensão das terras em questão.
Porém – elas sabiam-no e os foreiros também – as nuas fragas do alto nada produziam. E, como tal, nada valiam. Os aforamentos de Tuias reportam-se, sem exceção, aos férteis vales que rodeiam a antiga Tongobriga, mas nunca à colina em si. Em 1498, a primeira referência às terras mais altas, em torno da igreja, não podia ser mais expressiva: de tão fracas que eram, não mereciam aforamento próprio e eram anexadas, como se de um autêntico brinde se tratasse, às terras do vale. Pelas do Freixo, tão só se diz que “não se pagua cousa algũa”.
As terras que, de facto, despertam interesse, são as mais baixas, onde a erosão é menor e os sedimentos se acumulam mais. Aí, os espaços cultiváveis não são tão exíguos, os solos são mais profundos e, sobretudo, há água. É, pois, no sopé da colina – “nos subúrbios da aldeia” como rezam os documentos – que se instalam os primeiros proprietários independentes. Mesmo esses, obrigados a árduo trabalho de criação de socalcos e transporte de terras para dar espessura a solos que não a tinham. Foi o caso dos Serpa Pinto, que, ainda não tinha terminado o século XVIII, e já compravam “terras fragosas que não produziam fruto algum de qualidade”.
Mas a quase totalidade das famílias que viriam a ser proprietárias de consideráveis extensões de terras no Freixo – algumas delas com um papel decisivo na modelação agrícola dos terrenos de encosta e na transformação da estrutura fundiária da aldeia, tais como os Castros, mais tarde Vahias de Castro, e os Corte-Real, entre outros – mantiveram-se como foreiras do convento até muito mais tarde. E só com a venda dos bens monásticos em hasta pública, a partir de finais do século XIX, se tornaram efetivas donas das terras que já há muito se encontravam na sua posse.
A estrutura da propriedade manteve-se, no essencial, até à extinção do convento em 1892, data da morte da última freira. Os processos de inventário dos bens conventuais em Santa Maria do Freixo iniciam-se um pouco antes, em 1890, mas não foram, de todo, pacíficos. Quatro anos depois, ainda se discutiam as irregularidades, omissões e erros do inventário, composto por 130 parcelas pertencentes a 12 prazos ainda em vigor, as quais foram levadas a leilão sucessivas vezes até encontrarem comprador. O que não foi fácil.
Portugal haveria de deixar de ser um reino e este processo ainda se arrastava, tantos foram os leilões que ficaram desertos. Muitas das terras do Freixo, já a preços de saldo, ainda continuavam sem comprador em 1915. Algumas foram sujeitas a pelo menos oito tentativas de venda em hasta pública, simultaneamente em Lisboa e no Porto, sobre os quais o desconto chegou a atingir 70% do preço base de licitação. Sem que, mesmo assim, fossem arrematadas.
Privatizados – e logo depois vedados – os espaços em que se realizava a feira que lhe dava vida; e marginalizada pela construção da estrada real que lhe roubou o movimento, a aldeia do Freixo parecia novamente condenada a um abandono que só a igreja paroquial teimava em contrariar, trazendo, a espaços, o povo da freguesia ao alto da colina.
A História repetiu-se. E, a cada ciclo, o sítio reinventou-se. E renasceu. E, em cada renascimento, mais evidente se tornou a sua vocação intemporal. O seu genius loci. Incapaz de fixar as pessoas, continuou a atraí-las. Até hoje.