A difusão do Cristianismo

Nascimento

A difusão do Cristianismo

Há mais de mil e quinhentos anos, alguém, em Tongobriga, pegou numa pequena taça, revestida por um luxuoso verniz vermelho, e desenhou na sua superfície lisa um conjunto de traços cujo significado deveria ser ainda totalmente desconhecido para a maioria da população: um X e um P, sobrepostos, ladeados por dois símbolos que já mal se veem, um alfa e um ómega.

X e P, Chi e Ro: as iniciais de Cristo em grego. Alfa e Ómega: o princípio e o fim de tudo. O Chrismon, símbolo cristão que o imperador Constantino havia adotado no seu estandarte, já em época tão recuada havia chegado aos confins ocidentais do Império, e pelas mãos de um dos habitantes de Tongobriga, era desenhado nesta singela peça, hoje reduzida a um pequeno fragmento, a qual constitui, para esta região, a mais antiga prova da adoção do culto cristão. O que não significa, de todo, que, nessa época, a difusão do Cristianismo fosse generalizada e que isso se refletisse em todos os aspetos da vida dos tongobricenses.

A existência de uma comunidade cristã organizada atesta-se em finais do século VI, quando Tongobriga, situada na diocese de Portucale, surge referida no chamado “Paroquial Suevo”, integrada num restrito conjunto de núcleos populacionais secundários (vici) escolhidos como sede de uma das ecclesiae que in vicino sunt, as quais são interpretadas como extensões do poder episcopal numa época em que o Cristianismo estava ainda muito longe de estar implantado nas comunidades rurais, nas quais os costumes ditos “pagãos” (leia-se “não cristãos”) ainda iriam perdurar por muito tempo.

O desenho de um símbolo tipicamente cristão numa simples peça de cerâmica revela uma manifestação pessoal da vivência cristã, transportando-nos para a esfera da vida privada. Mas a existência de uma comunidade cristã implicava bem mais do que isso. Não dispensava a existência de um templo, para a celebração de atos litúrgicos. Templo esse que haveria de polarizar todas as manifestações da fé cristã, incluindo as relacionadas com a crença na vida para além da morte. O que se traduz no abandono das necrópoles extramuros e na criação dos cemitérios para que os crentes pudessem garantir a salvação ao serem sepultados apud ecclesia.

Em Tongobriga, está comprovada a utilização da necrópole romana de cremação pelo menos até finais do século IV. Por outro lado, nas proximidades da Igreja, foram identificadas três sepulturas de inumação, com fundo forrado a tegula, cuja tipologia encaixa bem nos séculos seguintes. O que significa que, nos tempos que se seguiram ao fim do Império, o cemitério, que deveria situar-se nas proximidades do templo, passa a situar-se em torno do local onde hoje se situa a igreja de Santa Maria do Freixo.

Sob a igreja atual, as escavações arqueológicas revelaram um grande edifício pavimentado a mosaico, do século V, que testemunha que, mesmo após a desagregação do Império Romano, continuou a subsistir em Tongobriga uma elite hispano-romana, herdeira de gostos e tradições artísticas e culturais que nada têm a ver com as novas classes dirigentes de origem germânica.

Terá a primeira ecclesia de Tongobriga resultado da adaptação de um espaço originalmente concebido para residência dessas elites? Terá ela resultado da evolução de um primitivo oratório privado? Ter-se-á ali adorado Jupiter, e, antes dele, os deuses protetores de Tongobriga? Ou teremos ainda de procurar mais – e noutros locais – para encontrarmos a primitiva igreja?

Não podemos esquecer que o imponente edifício das termas romanas forneceu materiais dos séculos VI e VII. E que, pela sua monumentalidade e qualidade de construção, é vulgar, no mundo tardo-romano, a adaptação dos edifícios termais a templos cristãos. E que até as coberturas abobadadas das termas romanas de Tongobriga resistiram, pelo menos em parte, até ao século XIII. E que, nos meados do século XVI, ainda esse edifício se chamava… Ermida de Nossa-Senhora-A-Velha.