
Nos finais do Império
Num momento não muito distante no tempo, na casa situada ao lado do local em que foi encontrada a peça decorada com um Chrismon, alguém ocultava, num qualquer esconderijo de uma das paredes, um outro tesouro: um pequeno pote contendo mais de quatrocentas moedas (uma de prata e as restantes de bronze), certamente o fruto das poupanças de várias gerações de uma mesma família que, por algum motivo, não teve possibilidade de regressar a casa…
Escondido nos inícios do século V, só foi recuperado pelos arqueólogos do século XXI. É inevitável associar a ocultação deste tesouro às perturbações sociais e económicas ocorridas por volta do ano 409 e associadas às chamadas “invasões bárbaras” de povos germânicos.
As alterações de finais do Império não se ficam, porém, pela difusão do Cristianismo ou por essas transformações sociais. Elas aconteceram a todos os níveis e, como tal, repercutiram-se em todos os aspetos da vida dos habitantes de Tongobriga. E se, por um lado, se notam sinais de perda de vitalidade da vida urbana – uma tendência à qual só parecem ter escapado as cidades que ascenderam à categoria de sede de diocese – também temos, por outro lado, sinais de sentido oposto.
Mais do que o suposto abandono dos seus espaços e edifícios públicos, Tongobriga parece ter-se mostrado incapaz de os renovar ou de neles fazer grandes investimentos.
É muito provável que o forum de Tongobriga tenha continuado a ser utilizado. Porém, nele não se reconhecem quaisquer obras posteriores ao século IV. O mesmo se passou com as monumentais termas romanas. Após o colapso, mesmo que parcial, da sua estrutura, inviabilizando a utilização termal do edifício, não mais parece ter havido capacidade para o renovar, pelo menos de forma a deixar vestígios. Mas também este edifício apresenta evidências materiais claras de continuar a ser usado.
Ao mesmo tempo que se multiplicam os sinais de intensificação do povoamento rural, quer com pequenos núcleos (casais e aldeias), quer com grandes explorações agrícolas (villae) de uma elite que se sentia já mais atraída pela casa no campo do que pela domus na urbe, o próprio aglomerado urbano que os romanos haviam desenvolvido em Tongobriga revela ter entrado em processo de clara regressão. A retração do espaço habitado é sugerida pela reduzida área de dispersão dos materiais mais tardios, dos séculos V e VI, que se cingem a um espaço restrito, no núcleo central do perímetro amuralhado, em torno da atual igreja de Santa Maria.
O facto de as habitações comprovadamente usadas na Antiguidade Tardia serem, por norma, uma mera reformulação de fraca qualidade das construções pré-existentes – um processo muito semelhante ao observado noutras cidades romanas – condiz também com esta perspetiva que nos parece revelar um mundo em decadência. Há, porém, como se disse, sinais de vitalidade.
Entre eles, avultam os indícios, cada vez mais fortes, de o forum e as termas terem continuado a ser usados, o primeiro como local de uma feira que só mil anos depois abandonaria o local, e o segundo com outras funções que não termais, sugeridas pelos materiais tardios e pela sua designação quinhentista: “Ermida de Nossa Senhora A Velha”. Também datável dos finais do império ou já da “Antiguidade Tardia”, um grande edifício, com pavimento em mosaico polícromo, constitui o único testemunho de que, mesmo após a desagregação do sistema político e da administração imperial, continuou a subsistir em Tongobriga uma elite dominante.
É, por outro lado, uma época em que o vale do Douro navegável revela um forte dinamismo económico que se manifesta, quer ao nível da presença de materiais importados, quer ao nível de várias manifestações artísticas que indiciam uma grande abertura – social, económica e cultural – ao Atlântico e também ao Norte de África e ao Mediterrâneo Oriental, abertura essa que foi provavelmente potenciada por um florescente comércio fluvial, particularmente ativo a partir do século V.